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Duda Salabert: O que você faz com os seus privilégios?

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(Foto: Lucas Ávila)

         Estamos no Edifício Maletta, rua da Bahia, 1148, no coração de Belo Horizonte. O celular anuncia uma mensagem, “me encontrem na portaria da rua Augusto de Lima”. Lá vem ela: Duda, uma grande mulher - em todos os sentidos. Se pudéssemos chutar por base, diríamos que são, mais ou menos, 1,90 de mulher. Nosso primeiro encontro havia acontecido alguns meses antes, em Ouro Preto. Um pouco sem jeito para futuras jornalistas, a abordamos durante um evento de lançamento da sua pré-candidatura ao senado na cidade. Assim como em Ouro Preto, Duda nos recebe de forma atenciosa e gentil. Trocamos algumas ideias e pegamos o elevador para a sede do Transvest.

          A sala de aula é simples, poucas cadeiras e alguns grafites, já as paredes são cheias de cartazes com frases de empoderamento e incentivo ao estudo, o que demonstra um ambiente bem descontraído, muito diferente do espaço escolar tradicional. Duda vai explicando como funciona a ONG, o cursinho e os alunos e alunas.

          Duda, dona de uma privilegiada bagagem intelectual, leciona no Colégio e pré-vestibular Bernoulli (um dos mais famosos de BH), uma das poucas - até onde nós sabemos - professora trans a lecionar na rede particular de ensino do país. “Os colégios abraçam e refletem a transfobia, que é institucional”.  Foi a primeira mulher trans da América do Sul a concorrer a um cargo majoritário na política. “Meus pares não chegam a 1% dos cargos políticos no Brasil”. Ela reconhece que só houve a possibilidade de concorrer para uma função de tamanha importância devido ao fato do seu processo de transição ter começado depois de adulta, já formada e com uma vida estável. “Me considero uma pessoa cheia de privilégios por isso”.

         A candidatura de Duda ao Senado foi um ato político simbólico. Em seu significado etimológico, a palavra senado revela a palavra senhor. Este cargo, então, é feito para senhores mais velhos. “A idade mínima para concorrer ao senado, no Brasil, é de 35 anos. A expectativa de vida de uma travesti é de 35 anos”. Os senadores têm papel político e simbólico de moralizar a sociedade. Assim, Duda e sua candidatura vieram de encontro ao sistema. “Essa moralidade que eles estão propondo, nós a recusamos e rejeitamos. Nada melhor que um corpo reconhecido como imoral para ocupar esse espaço. Nós propusemos a imoralidade absoluta no país”. Nesse caso, com seus 38 anos, estava totalmente apta a pleitear esse cargo. Duda é transgressora de corpo e alma, e, mesmo não sendo eleita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), conseguiu abalar com as estruturas e inquietar a moralidade do senado.

          Vegana há 6 anos, também atua na causa da defesa animal e ambiental. Acredita que nenhuma espécie deve ser colocada acima de outra. Respeita qualquer tipo de vida, tratando-os como seus iguais e a adotando a doutrina ecocentrista. A Terra, sendo nosso lar, deve ser cuidada por todos.

         Aos 38 anos, Duda se reconhece como mulher há 6 anos. “Comecei a ter algumas reflexões sobre gêneros e sexualidades”. Atenta ao mundo, diz que nunca havia atinado para essa questão antes, pois não há debates sobre esse assunto na sociedade. “Nos apagam como corpos, mas também como assunto”. Apesar de toda a reflexão gerada, Duda, ainda assim, não entendia muito bem o que se passava dentro dela. “Costumamos colar gênero com sexualidade, então eu comecei a questionar: eu devo ser gay”. Ela sempre gostou de mulheres, nunca se interessou por homem. Então pensei: “sou gay enrustido ou, pior, sou gay e não sei se sou gay”. Talvez, uma das mais complicadas etapas de sua transição. O reconhecimento de Duda como trans se deu de uma forma simples, senão clichê. Sempre compartilhou suas inquietações e sua transição dentro da sala da aula. É uma professora que instiga seus alunos, e que faz da sala de aula um lugar de conversa. Foi uma de suas alunas que, vendo os questionamentos que a professora fazia sobre si mesma, lhe apresentou Lawrance Anyways. O filme, que conta a história de uma professora de literatura, casada com uma mulher cisgênero e que inicia sua transição tardiamente com o apoio de sua esposa, possibilitou novas perspectivas sobre sua própria vida. “É isso, é possível, então”. 

          “Eu sempre soube”, a resposta da esposa de Duda soou como aceitação, apoio e, mais que isso, um convite para uma nova vida que elas levariam. A parceira de Duda se reivindicava como lésbica, antes de elas se conhecerem. Após o envolvimento, passou a se reivindicar como bissexual. No entanto, logo depois do processo de transição de Duda, passou a se reconhecer como lésbica novamente. “Eu não entendia muito bem no começo, ela também não. Eu sou uma travesti lésbica, masculinizada, bem caminhoneira. E não pretendo perder a minha masculinidade, até porque, a noção de masculino e feminino não é uma noção de gênero”.

           Duda viu que é uma mulher trans privilegiada. E a pergunta que ela sempre faz em suas palestras merecia uma resposta: “O que você faz com os seus privilégios?”. Ela usou os dela para criar a Transvest, um projeto artístico-pedagógico que tem como intenção reinserir esses sujeitos da comunidade trans na sociedade.  A busca pelo reconhecimento de seu gênero não apenas representava uma transição introspectiva. A medida em que consolida seu reconhecimento em seus pares, Duda transita, também, em seu lugar de fala e amplia seu intelecto às reais necessidades da causa, pois agora sente na pele a vulnerabilidade de uma parcela da população excluída e marginalizada que enfrenta diversos obstáculos para ser reconhecida como iguais diante de suas individualidades. 

          Por começar seu processo de transição já adulta, se considera favorecida por ter tido a oportunidade de ter acesso a educação e uma base familiar.  Assim, não houve uma violação das primeiras etapas fundamentais à vida de um indivíduo que se projeta socialmente como sujeito de direitos e deveres. Seu grau de inserção e aceitabilidade social já estavam consolidados ao iniciar seu processo de transição. “Quanto antes você iniciar sua transição, maior a vulnerabilidade e a violência”.

        Envolvida em diversas causas sociais, ela não para. Iniciou um curso de qualificação para as profissionais do sexo e os ambulantes que trabalham na Guaicurus. Tem vontade de transformar o maior ponto de prostituição da América do Sul em um ponto turístico de BH. “Democratizar a educação por meio de uma educação popular, essa é a ideia”. Entre uma vontade de fazer algo aqui e outra ali, Duda vai deixando escapar nos gestos, nas falas, no olhar, como a nossa sociedade estigmatiza a prostituição. 

         “Os laços familiares se afrouxam, mas temos que enfrentar isso, também”. Quando perguntamos da família e do processo de aceitação, surge um clima de desconforto na sala, mas a deixamos prosseguir, sem interromper. Tenta disfarçar e desviar do assunto dizendo que nunca é fácil. Duda desvia o foco, o olhar e conclui, “a aceitação na família é um obstáculo. A família é uma instituição burguesa e como tal, acaba por nos excluir”. Atritos acontecem em quase todas as famílias.

           Formada em Letras, chegou a cursar Antropologia, mas não concluiu o curso. Agora faz Gestão Pública para adquirir experiências na área política. Entrar para a política foi um meio que encontrou para ajudar seus pares e, ao mesmo tempo, se ajudar.

              Por falar em sala de aula, a aceitação dos alunos de Duda após a transição foi tranquila. Os pais nunca reclamaram. Quer dizer, “nunca chegou a mim nenhuma reclamação de nenhum pai ou mãe. E outra coisa, em colégio ou pré-vestibular, minha aula é boa em qualquer lugar. Isso eles não podem contestar nunca”. Pronto. É isso! Duda nos inspira autoconfiança e segurança.

          A inquietude de Duda direciona seus movimentos de todas as formas. Fazendo das causas alheias suas próprias causas. Atua em presídios, dando aula e suporte aos presos. Resgata bichos e tem alguns em casa: gatos, coelhos e cachorros. Abriu ONG, criou cursos de qualificação, dá aula, foi candidata ao Senado em 2018.

          Nosso último encontro aconteceu em Mariana, no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA) da Universidade Federal de Ouro Preto, onde estudamos. Duda veio a cidade para participar de uma roda de conversa sobre gênero e diversidade, promovida pelo Projeto Vidas - Gênero, diversidade e sexualidades. Nesse dia encontramos um auditório lotado, como poucas vezes vimos na história do nosso campus. Além disso, pudemos notar, também, uma Duda muito diferente daquela que nos recebeu em Belo Horizonte.

          Ao começar o debate, Duda logo tratou de se levantar. Disse que aquilo devia ser mania de professora. E ali começou uma verdadeira aula de política, história, cultura. Trazia consigo um discurso forte sobre a realidade das travestis, com muitos números expressivos e sempre reafirmando a violência que sofrem, um verdadeiro genocídio.

        Nesse dia, foi aplaudida de pé por dezenas de estudantes e professores arrebatados pelo espírito de empoderamento e luta. O fato é que Duda “acontece”, ela é pura militância e força no engajamento de pessoas para os seus ideais.

          Ela já havia começado o processo de hormonização, mas com muita cautela para não mudar seu sistema endócrino de forma brusca, pois ela e sua esposa serão mães. Ainda este ano, nasceu Sol, que, já pelo nome, e de forma intencional ou não, parece que irá iluminar ainda mais a trajetória de Duda. 

      Apesar de não ter sido eleita no Senado, conseguiu uma expressiva quantidade de votos, cerca de 350 mil votos. Com o fim das campanhas política, Duda ficou nacionalmente conhecida e, hoje, além de atuar em BH, percorre as cidades levando sua visão empoderada do mundo.

(Fotos: Reprodução/Instagram)

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