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Educação: direito de quem?

        Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), cerca de 57% da população trans não chegou sequer a concluir o ensino fundamental e apenas 0,02% conseguiram entrar nas universidades. De acordo com a Associação, das 63 universidades federais do país, apenas 13 ainda não possuem nenhuma regulamentação interna para os nomes sociais. O Decreto nº 8727 de 28 de abril de 2016, aprovado em nível federal pela então presidenta da república Dilma Rousseff, facilita não só a entrada das pessoas trans nas universidades, mas, principalmente, contribui para a permanência e conclusão da graduação. É o começo da busca por respeito e tratamento igualitário para esses sujeitos.

        Infelizmente, sabe-se que é apenas a ponta do iceberg para a maioria dos casos das pessoas trans na educação. Uma vez que a Antra afirma que, desses sujeitos, 72% não possuem o ensino médio e 57% não terminaram nem mesmo o ensino fundamental. E onde está o “erro”? A professora Duda Salabert, professora do ensino médio, travesti, ativista no movimento trans e idealizadora da ONG Transvest, cujo objetivo é reinserir pessoas trans na sociedade por meio da educação e do acolhimento de forma afetuosa, conta que quanto mais cedo o indivíduo se assume, maior a chance de expulsão de casa e rejeição das famílias. Os casos mostram que travestis são expulsas de casa com 15 anos. Sem apoio ou estrutura, os números da evasão escolar se tornam cada vez maiores e muitas acabam na rua, na prostituição. Cerca de 90% das pessoas trans trabalham como profissionais do sexo. “Por começar a minha transição tardiamente, sei que possuo um lugar privilegiado que conquistei, na época, como homem cis. Se eu fosse mandada embora hoje, dificilmente outra escola particular me contrataria, mas isso não tira a minha situação de vulnerabilidade. Então, por me sentir privilegiada de algum modo, quis usar essa condição para ajudar os meus pares. Encontrei na Transvest um ato de exercer a minha cidadania, afinal o que eu faço com os meus privilégios?”. 

        Em razão da opressão e preconceito que enfrentam dentro das escolas, muitos trans que se assumem ainda jovens, acabam encontrando na evasão escolar uma maneira de se libertar da violência nesse ambiente, como é o caso da aluna e secretária da ONG, Michelly Colt, que relata sua experiência escolar: "eu estudei até a 7ª série, mas não continuei por causa da transfobia, que era muito intensa. Como na época não tinha muitos meios para fazer uma denúncia, era muito mais difícil continuar. Então, eu tinha duas escolhas: ou eu estudava nessa escola, onde eu era repudiada todos os dias, ou eu me afastava. Aí eu preferi me afastar”. 

           Em entrevista concedida ao Correio Braziliense, a psicóloga e professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), Jaqueline de Jesus, considera que os transexuais vivem dentro e fora dos ambientes escolares um apartheid de gênero, ou seja, há uma segregação na forma de tratamento e na garantia dos direitos. Acontece que a sociedade ainda não está preparada para lidar com essa parcela da população. Além disso, faltam políticas públicas eficazes para suprimir o que a psicóloga denomina de “expulsão dos transexuais da educação formal no Brasil”.

Segundo a advogada e professora doutora do curso de Direito na UFOP, Flávia Máximo, as políticas públicas voltadas para a inclusão de trans na sociedade e na educação estão começando a ser desenvolvidas agora, nos últimos 20 anos, ou seja, a pauta é recente e ainda há muito a ser feito. Diante do atual cenário político do país, onde é possível acompanhar os muitos retrocessos na área dos Direitos Humanos e da educação, está em pauta o projeto de Lei Escola Sem Partido. O projeto, que já causou muita polêmica e é fortemente apoiado pela bancada evangélica, pede a proibição da palavra “gênero” e da expressão “orientação sexual” dentro de sala de aula. A explicação é que a utilização dos termos é considerada apologia à ideologia de gênero e não representa a sociedade. Um projeto como esse tira todo e qualquer direito a discussão de gênero nas escolas e nas universidades impossibilitando o diálogo e a conscientização sobre o tema. Flávia lembra que “já no ensino fundamental, toda a nossa tentativa de inserir qualquer diálogo sobre orientação sexual e identidade de gênero foi repudiada. Foi transformada em fake news com a ideia deturpada de ideologia de gênero. Sinto que esse tipo de educação seria essencial para evitarmos uma cultura transfóbica e homofóbica”. Para Flávia, essa forma de ensino é importante desde cedo, pois são essas crianças que, futuramente, terão maturidade e consciência para oportunizar uma pessoa trans. A ideia de criar nessa geração um olhar diferente e mais respeitoso com esses sujeitos é muito importante para que possa ocorrer uma mudança cultural na mentalidade das pessoas e na estrutura da sociedade.

         No que diz respeito ao processo de inclusão de diferentes sujeites na educação, temos como base o princípio de coletivização do conhecimento. Dessa forma, os educadores consideram duas vertentes, que há uma divergência: os termos “educação inclusiva” e “educação democrática”. A educação que abrange o grupo LGBTQ+ é chamada de “educação democrática”, baseada em princípios democráticos de uma democracia participativa, dando direitos de participação iguais para alunos(as), professores(as) e funcionários(as). Para o professor, do Departamento de Educação da UFOP, Marco Antônio Torres, “não basta ser inclusiva, tem que ser uma escola democrática para criar condições de entrada, acesso e permanência para todos alunos(as). Nós temos uma sociedade civil heteronormativa e esses grupos enfrentam a escola racista e machista. A política pública está lá, mas, muitas das vezes, ela não é acionada”. A articulação política desse grupo de pessoas, travestis, transexuais e simpatizantes pela causa é recente, com pouco mais de 20 anos. Apesar da organização desses grupos, o movimento incomoda àqueles que não admitem o processo democrático de viver com as diferenças.

Educação inclusiva é uma proposta cujo objetivo é inserir alunos(as) com todo tipo de deficiência, transtorno ou com altas habilidades, em instituições de ensino.

         Para fundamentar sua fala, Marco Torres faz uma alusão ao conceito de “verdade” de Michel Foucault, “nós temos um grupo tentando produzir um regime de verdade que defende a escola democrática e um grupo tentando produzir um regime de verdade que é um projeto que, de alguma forma, vem negando a existência do racismo, da homofobia, da transfobia, do machismo, dentro e fora das instituições de ensino. Eles não vão assumir que são contra esses grupos de pessoas, eles vão falar que não existe o preconceito. Isso é muito mais difícil de combater, porque eles estão negando a existência de qualquer motivo. A escola, hoje, é um terreno de disputa, onde os conservadores vêm perdendo espaço para as pessoas que questionam, debatem e levam seus corpos para dentro dessas instituições”. Quando se fala em educação inclusiva, remete-se muito as pessoas com deficiência ou com transtorno de desenvolvimento. O que é chamado de inclusão é, na verdade, a democratização da educação. O termo “educação inclusiva” não é correto para usar em relação aos trans. “O direito de transexuais, negros, indígenas a participarem da escola está nas lutas pela democratização dos espaços escolares do direito educacional”, aponta o professor Marco Torres. Há uma discrepância na sociedade, em geral, nas questões de tratamento entre a sigla LGBTQ+. O LGB, que representa a orientação sexual, tem visibilidade e um grupo forte de luta em várias vertentes. Já o TQ+, que se refere a identidade de gênero, enfrenta dificuldades de se consolidarem em grupos sociais por possuírem uma representatividade menor dentro das universidades. Marco Torres aponta essa dualidade existente dentro do próprio grupo LGBTQ+, “as próprias universidades ainda não estão bem preparadas para receber pessoas trans. Ouço relatos informais de alunes trans que passam por processo difíceis até que elas consigam um grupo de apoio, dentro e fora da instituição”.

Um dos maiores filósofos da contemporaneidade, Michel Foucault, discute o conceito de sexualidade e traz  “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro”.

          Ainda de acordo com a professora e advogada Flávia Máximo, há uma lacuna entre academia e militância, o que gera um maior afastamento dos transexuais das universidades, “existe um abismo entre academia, militância e realidade social. Isso faz com que os acadêmicos usurpem o conhecimento e os militantes não conseguem penetrar na academia. Então, tem um tipo de controle de conhecimento, que é uma via de mão única. A academia utiliza essas pessoas como objeto de pesquisa, mas poucas vezes como sujeito pesquisador”. Flávia sugere que há uma necessidade de enlace entre o meio acadêmico, os movimentos dos ativistas e a realidade social, “Essa exclusão das pessoas trans dentro da universidade se manifesta em eventos estudantis, congressos, onde apenas os acadêmicos interagem e não gera nenhum tipo de transformação social. Essa é minha crítica geral”. Dessa forma, há um processo de segregação tanto na comunidade universitária, quanto no mercado de trabalho. Para o professor do curso de Jornalismo da UFOP, Felipe Viero, esse processo de apartar o grupo trans e a ruptura da possibilidade de inserção na educação e no mercado de trabalho, que deveria ser um direito assegurado a todes, “é uma lógica de desumanização do sujeito. Como você é diferente, você não vale tanto quanto eu. É um processo de capitalização dos corpos”. Enfatiza, ainda, a importância de se conquistar os direitos, “muitas pessoas, com um ponto de vista mais ortodoxo, criticam políticas públicas LGBTQ+ e, infelizmente, alguns do próprio movimento acabam endossando esse discurso: não são direitos LGBTQ+, mas sim direitos humanos. Mas têm as especificidades, particularidades de cada indivíduo, que não são respeitadas. Muitas vidas que deixam de ser consideradas vidas porque não se enquadram em uma norma heteronormativa, patriarcal e cisgenerificada. E nesse contexto, essas vidas acabam valendo menos”.

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